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Notícias e Estórias, que ficam

Meio Século depois...

Ao meio-dia de um sábado, sempre o primeiro depois do dia 15 de Maio, num restaurante da região do organizador (Lisboa, Braga, Fátima, Peniche, Porto-São Félix, Santarém, Viseu, Batalha, Évora, Alenquer, Arouca, Paredes, São João da Pesqueira, Ponte de Lima, Caldas da Rainha, Sta. Maria da Feira, Alpedrinha, Cascais, Barcelos, Vimioso, A Ver-o-Mar), juntam-se algumas dezenas de homens e mulheres com idades próximas, muitos já na “casa” dos 70… outros mais novos… descendentes, filhos e netos, num ritual ansiado.
O ambiente é de alegre convívio, entre a cerimoniosa presença das esposas rejuvenescidas e a camaradagem barulhenta dos homens.
As mulheres relembram, mais um ano que passou, os novos descendentes… perguntam pela família e pelas novidades.
Os homens juntam-se em grupos, riem, falam alto e distribuem abraços com palmadas nas costas.
Quem está de fora, nem sempre consegue compreender este tipo de concentração de pessoas. Umas de roupas domingueiras e outras informais, como num dia normal.
Apesar da nossa dispersão geográfica, entre Norte, Centro e Sul de Portugal, que separa as nossas vidas... a camaradagem dos tempos de guerra constitui o motivo para que uma vez por ano haja uma viagem no país e no tempo e com horas de recordações, que pertencem a todos com a comemoração na continuidade entre o passado e o presente.
Depois dos fartos aperitivos… sem mesas reservadas… há quem guarde o lugar para a esposa e descendentes e na mesa ao lado, para os amigos convidados.
Há grupos no feminino, as “militaras” que se tornaram amigas ao longo dos anos e se juntam entre si.
O almoço convívio, pelo ambiente e pela variedade da comida, parece um casamento… mas é um encontro de camaradas, ex-combatentes na guerra de guerrilha em África, que se juntam e se revêm durante uma tarde à volta do prazer da mesa.
São os encontros anuais, da Companhia 3485 do Batalhão 3870, que acontecem com regularidade desde o nosso regresso de Angola, em Junho de 1974.
O Batalhão 3870 foi mobilizado em Julho de 1971. Constituído por uma Companhia de Comando e Serviços e quatro Companhias Operacionais, num total de 1100 (?) homens. No entanto, foi só em Novembro e no Campo Militar de Santa Margarida que se juntaram os restantes militares das especialidades para o embarque em Fevereiro de 1972.
Todos os anos há um bolo com o brasão de armas da Companhia e um brinde com espumante para todos, os que estão e os que não podem estar presentes. É também neste momento que se escolhe o responsável pela organização do próximo encontro / convívio, a quem cabe, sem oposição, toda a logística, na escolha da região, do restaurante, da ementa e do envio dos convites.
Estes (re) encontros nasceram da teimosia e determinação de um pequeno grupo de camaradas que decidiram ter chegado o momento de reunir a Companhia 3485. Com a lista dos nomes à data da incorporação, iniciou-se, entre telefonemas, viagens a aldeias e conversas com vizinhos, o processo de localização dos antigos companheiros de armas. Alguns, nunca foram encontrados.
A primeira vez que revi ex-companheiros, olhei, olhei… para muitos foram precisas pistas… não conheces o Freitas? És tu castiço! São tantos anos… no entanto, outros não tinham mudado nada, não havia engano possível.
Apesar das roupas civis, de agora, que podem denunciar a proveniência de cada um… os uniformes, de então, que distinguiam apenas a hierarquia militar, constituíam um nivelador social sem precedentes nas nossas vidas, que perdura até aos dias de hoje.
De um momento para o outro, o salão converte-se num espaço de festa… dançam e cantam os temas. Os que fumam aproveitam para vir até à rua ou simplesmente falar das suas vidas, do tempo que passou, de camaradas falecidos e dos que ainda são procurados, na tentativa de os juntar. Mas há também quem relembre velhas histórias de Angola… as que merecem ser lembradas, num tom geral de boa disposição.
É desta forma que as memórias da guerra no Leste ou na Lunda, entre 1972 e 1974, se reconstituem no presente com os episódios vividos há meio século, entre os valores da camaradagem e os acasos, de sorte ou azar.
Ao longo do ano… noutros convívios, que também nos levam a viajar e não só no tempo… desfrutamos em proximidade e durante mais tempo a amizade, que perdura no inédito e num prazer diferente por Espanha, França, Marrocos, Açores, Checoslováquia, Eslováquia, Hungria, Bulgária, Roménia... ou a conviver e a partilhar os momentos... num fim de semana de passeios (Coimbra, Serra da Estrela, Óbidos, Foz Coa, Lisboa, Viana do Castelo, Castelo de Vide, Évora, Chaves, Setubal), celebrando as castanhas e o São Martinho.
O guião dos convívios repete-se ano após ano sem grandes surpresas. Antes de começar, a festa já acontece nos pontos de encontro, antes de um almoço anual, num aeroporto ou num hotel para um fim-de-semana de passeios.
Há de tudo, num ruidoso aquecimento… conversas, alegria, anedotas, cantorias, os beijinhos do Chumbinho e a poesia do “Manel” Esteves, onde é declamada aquela solidão do destacamento militar no meio de nada, só selva Africana… hoje há a comemoração partilhada do passado com a “outra família”, que a guerra construiu numa situação de violência, doenças e dependência mútua.
Naquele tempo não se fazia a guerra sozinho… é essa a imagem que ainda tenho e que não se apaga… a proximidade dos outros.
Hoje escrevo, porque um de vós estava perto de mim.
Sem passarmos a linha, que separa o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido… quando nos juntamos, o tempo da guerrilha renova-se… era o isolamento, a tensão em terra hostil e as aventuras num mundo diferente, que se descobria.
Aqui e ali, vai-se ouvindo: RECORDAS-TE?
DE LUANDA… uma cidade alegre, elegante, ao mesmo tempo antiga e moderna. Bebia-se uma cerveja e vinha logo um pires de camarão!
Quando vinham canecas, era uma barrigada de marisco.
Os arredores, com os musseques muito pobres e cheios de barracas de madeira e de chapas e ruas com esgotos a céu aberto. Um mundo incrível.
E… a “avenida” da prostituição. Porta sim, porta não, ao postigo ou sentadas à entrada a oferecerem-se, como mercadoria. Nunca pensei que fosse possível existir uma “coisa” assim.
DAQUELE HORIZONTE… mata, só mata, tudo primitivo e praticamente sem presença humana… os rios e as suas enormes chanas, as aldeias a horas de distância e a população a partilhar só o que a natureza lhes dava.
DAQUELA CULTURA… gostava do ambiente entre palhotas, as fogueiras, o pirão e o cheiro à mandioca… perdia-me a ver aqueles rituais fascinantes, mas também os havia de horror… tão diferente da nossa terra.
DAS PICADAS… para mim, eram uma tortura. A tensão era enorme, estava sempre à espera de levar um tiro nos cornos ou, então, de não chegar a ouvir o estoiro da mina debaixo da Berliet.
DO DESTACAMENTO DO CANAGE… impossível esquecer.
Quando não estávamos de serviço, a fazer segurança ou em proteção, andávamos de camisola ou em tronco nu a banhos no rio… e a comida… um sabor! Apetecia mesmo!
Apesar do inimigo estar ali connosco, aquilo era um paraíso… foram os melhores dias… não havia formaturas e quando havia descanso ninguém inventava qualquer coisa para fazer. Ajudou a matar as saudades de casa e da família.
… DOS GE’s… só me lembro, que havia qualquer coisa estranha neles. Passavam semanas na mata, desenfiados, e ninguém sabia por onde andavam. Sempre achei, que a qualquer momento podia haver a possibilidade de inversão das lealdades. Afinal, era a pátria deles!
De quem não gostava mesmo, era dos Cipaios e até das Milícias, também. Um dia vi-os, junto à casa do Chefe de Posto, em círculo, a espancarem uma mulher, que não conseguia fugir. Naquele momento senti revolta e vergonha. Hoje compreendo melhor a situação das mentalidades de “pretos e brancos”, à época.
NO QUARTEL… o isolamento era enorme. Depois de meses seguidos sem sair, a ouvir as mesmas conversas e a ver as mesmas caras, a impaciência instalava-se… a mesma rotina, mês após mês. Era muito difícil… para não entrar em loucura, muitas vezes às sete da tarde já estava na cama.
DA CHEGADA DO CORREIO… a chegada do correio era a bênção da família. Depois íamos para a caserna ler, ler e reler num grande silêncio… mas também havia, os que não se interessavam. Um dia o Axx vira-se para um conterrâneo… a minha mãe diz aqui no aerograma, que a tua namorada anda com o filho da Carolina… apesar do silêncio, veio logo outro, em cima: Ai a grande vaca, pôs-te os cornos… risos, gargalhadas e uma festa do “carago”!
A tropa acabou por ser boa, abriu-me os olhos. Quando cheguei a Angola, eu era um inocente.
DOS BATUQUES… eram uma maravilha de sons e de danças. Assisti às batucadas quando um morre. Aquilo era uma festa, comiam, bebiam e dançavam toda a noite. Eram velhos, novos e até mulheres com miúdos às costas.
O que acabo de escrever em plena Pandemia (Janeiro de 2021) são apenas alguns fragmentos de um passado distante, escutado nos convívios e que cada um dos intervenientes ainda recorda com um olhar retrospetivo e reconstruido.
Não quis ser exaustivo, mas as memórias e os episódios repetem-se nos convívios, ano após ano… por vezes, apenas na troca de versões do mesmo acontecimento.
Apesar de tudo, os temas são consensuais.
A maioria das recordações, estão quase sempre concentradas na descoberta da cidade de Luanda, na vida das aldeias (quimbos), na entrega das roupas à lavadeira e nos namoros (muitos), nas viagens em picada, nos banhos de rio, nas noites de batuque e na nossa vida no meio do “inimigo, com duas faces”. Só depois, vem a saudade, a tensão, o medo das minas e das emboscadas, a rotina no quartel, as aventuras no desconhecido e os horizontes de mata.
Este texto com a disciplina do tempo passado e presente.
Tal como os anteriores, é mais um testemunho para a História, mas também um sinal à sociedade política, que ainda se envergonha daqueles que um dia chamou à pressa para combater.
Foi desta forma, que decidi reviver o passado, entre sentimentos de revolta e saudade, mas também de repúdio, pela juventude perdida numa guerra inútil, pelo patético discurso ouvido no Alto Chicapa, em finais de 1973 e pelas decisões desumanas, desastrosas e precipitadas, na quebra unilateral de acordos, que potenciaram ataques indiscriminados e conjuntos pela UNITA e MPLA às NT (nossas tropas) e abriram o caminho à Guerra Civil em Angola.
Para terminar, resta-me mencionar a minha eterna gratidão para com os meus camaradas de armas. Com eles, contínuo em divida pelos dois anos e meio de convivência, pela amizade desinteressada e, sobretudo, pela solidariedade nos momentos improváveis e difíceis.
Sem aquela partilha de esforços e de sacrifício, todos os obstáculos seriam intransponíveis.
"O valor das coisas não está no tempo que elas duram,
mas na intensidade com que acontecem. Por isso,
existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis
e pessoas incomparáveis".
Fernando Pessoa
Aquele abraço, do tamanho do Chicapa.
Carlos Alberto Santos


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